Tempos de paz
Imagem: Sohorta
Quem visse chover há pouco diria que outro Dilúvio acontecia. Agora o sol brilha, porque brilha. E a escuridão tenebrosa que assola a Terra parece ter-se escoado para uma sarjeta imunda. Quem dera!
Hoje à janela, enquanto chovia, regressei ao passado. Àqueles dias em que pelos largos blocos de granito escorriam lágrimas grossas que ensopavam a pedra e os solos. Ao frio cortante lá fora e ao cheiro do ar embebido em fumo da madeira, nas lareiras onde o caldo se fazia, nos potes de três pernas, gostoso como nenhum outro. Cheirei a massa da broa, a levedar na masseira, com a toalha branca de franjas por cima. Tão alva como a neve, perto dos troncos e da caruma que se fazia brasa.
Nesses dias costumava sentar-me nas conversadeiras, a olhar para o Marão com os cumes cobertos de neve, sabendo que nos espigueiros, onde tanta brincadeira aconteceu, o milho e os feijões jaziam húmidos e empilhados no chão. Eram dias que originavam noites de recolhimento e de muita história contada, verdadeira ou inventada, após as malgas de caldo. Uma ou outra sardinha frita. Cebola, rachada, com sal e trigo de quatro cantos.
Imagem: Petiscos.com
Dias em que nas latadas, as folhas de videira lacrimejantes soluçavam tanto como as pedras e um manto de interminável melancolia descia sobre os telhados e as copas das árvores. Só as amoras ficavam mais escuras e luzidias. Mantendo os figos, teimosamente, o seu habitual verde-claro.
Era um tempo que se desenrolava pacato e pachorrento, onde era tudo tão simples, belo e inesquecível. Nada parecia poder conspurcá-lo.
Mas sobreviriam dias, mal sabíamos, em que a vida parecia ter-se transformado em diversão circense na mão cínica da morte, que as ceifava por capricho. Outros em que o céu cuspiria fogo sobre as gentes, que derramariam a sua dor infindável, sem que a Divina Providência se apiede e o tempo volte, ao que era então.